A Perfeição da Criação

Dois crimes foram cometidos na mesma cidade, porém em dois espaços distintos.

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Em ambos os casos, um homem invadiu uma lotérica a mão armada, apenas para ser flagrado por uma viatura policial ao se retirar da cena carregando dois sacos de dinheiro. Um assalto foi perpetrado por um rapaz de pele lisa, branca, porém naturalmente bronzeada, ele é magro, tem olhos azuis, cabelos loiros e abundantes, postura ereta, além de um ar confiante que beira a mais plena tranquilidade. É um homem de 28 anos bastante atraente e bonito. O outro crime foi cometido por um rapaz de mesma idade, também branco e um pouco bronzeado, mas sua pele é rigidamente “esburacada” provavelmente devido a maus momentos com a lâmina de barbear durante a adolescência. Ele também é loiro, entretanto seus cabelos apenas crescem nas laterais da cabeça, sua postura é terrível, e o rosto, além de ferido pela gilete, é bastante redondo com um nariz desproporcionalmente comprido. É um rapaz que seria taxado pelos padrões convencionais de beleza ocidental como pouco atraente e até feio. Ambos são homens que vivem na mesma cidade e tem semelhante idade, classe social e nível educacional. Os dois casos vão a julgamento e as sentenças são encaminhadas. A pena do rapaz bonito é levemente mais branda do que a do rapaz feio.

São bastante famosos os estudos que discutem a predisposição para pessoas mais bonitas, na média, receberem penas mais leves por crimes relativamente menores como roubo, fraude, contrabando, em comparação com sua contra-parte que talvez disponha de um dente podre aqui, outro faltando acolá, ou que tenha vivido desde a infância com uma verruga peluda logo abaixo do olho. O mesmo é verdade também para quando é apresentado apenas uma descrição física escrita do criminoso em que palavras como “bonito” ou “bonita” estão em uma inocente folha de papel. Ou seja, basta a leitura de certas palavras que descrevem um sujeito para que os estereótipos da beleza sejam ativados.

Nikolaj Coster-Waldau on meth
Pra descontrair um pouco 😉

Agora, vamos imaginar que não existe um júri. Não existem pessoas envolvidas na decisão da sentença final desses dois criminosos. No lugar disso, temos literalmente uma máquina computadora jurídica. Uma máquina que estaria programada para receber todos os dados dos indiciados: nome, idade, personalidade, comportamentos, histórico, etc. Além de todas as informações referentes ao crime cometido: o ocorrido, horário, local, vítimas (e todos os seus dados), relatos de testemunhas (e todos os seus dados), absolutamente todas as variáveis que são consideradas para uma sentença seriam inseridas na máquina. A partir disso, sua programação entraria em ação e seria gerada a sentença calculada como a mais “justa” dentro dos parâmetros daquela sociedade. É a máquina que faz todo o trabalho de julgamento e decisão antes delegado aos humanos.

Como seria um sistema inteiro, cuja função é atribuir culpa, funcionando com um aparelho desses?

The 'Bombe' code-breaking machine, 1943.
Exemplo clássico da máquina que é tremendamente mais eficiente do que centenas de mentes humanas juntas: “Bombe”, o codebreaker de Alan Turing

Com certeza elementos como a beleza do criminoso não entrariam na balança. Cor, classe social, status, nada disso entraria na conta. Seria apenas a máquina com toda a sua frieza, seus dados. Ao retirar os seres humanos da equação, você tira a subjetividade, preconceitos, tanto pessoais quanto estereótipos pré-estabelecidos, experiências pessoais que poderiam influenciar de alguma forma, etc, todos inerentes a psicologia humana, e inevitáveis quando um homem é colocado para julgar um outro homem. E portanto, os dois criminosos do caso da lotérica receberiam sua pena da forma mais justa possível. Usar uma máquina assim para julgar criminosos e seus crimes é fundamentada dentro de uma sociedade como a nossa, já que é espantosamente imparcial, e consequentemente, justa.

Ou não?

O que exatamente é “justo”? Seriam as regras de cada sociedade embutidas na máquina e portanto utilizadas por ela para calcular a pena do condenado? Ou será que há muito mais dentro do “justo” do que apenas a ordem específica de determinadas palavras cuja função é conceder-lhe um significado perfeitamente neutro e imparcial? Talvez o que falte na máquina seja exatamente aquilo que gera as atitudes que mais criticamos em nós mesmos: nossa humanidade. Uma máquina talvez seja a mais justa dentro de uma estrutura objetiva e ultra-racional da palavra, mas ela não seria capaz de exercer misericórdia, por exemplo. Uma máquina apenas julga, seguindo precisamente sua programação, dados e estatísticas, e sua sentença seria proclamada valendo-se de igual moeda. Talvez seja aceitável que as pessoas mais bonitas recebam penas mais leves do que as feias. Talvez seja aceitável que preconceitos pessoais influenciem negativamente na decisão final de uma sentença. Esse é o preço a ser pago para que exista sentimentos dentro da atribuição da culpa. Sentimentos como compaixão e misericórdia. Precisamos desse fator humano imprevisível para nos aproximarmos o máximo possível do inalcançável “justo”. E para termos essa variável humana, humanos precisam julgar humanos.

Mas de novo… e se não?

E se compaixão e misericórdia forem dados programáveis tanto quanto “olhos azuis” ou “pele esburacada”? E se uma máquina for capaz de aprender a atribuir culpa, mas levar em consideração as variáveis da compaixão, misericórdia e todos os sentimentos que muitos conferem a nós seres humanos como fazendo parte da “alma” ou “algo a mais”? Talvez seja uma questão de entender as intrincadas ligações cerebrais que fazem de nós, humanos; e descobrir em níveis inimaginavelmente profundos o que faz as engrenagens das engrenagens das engrenagens da máquina uber-complexa que somos girarem.

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Como o visionário Alan Turing relatava, os homens nada mais são do que máquinas muito complexas, e não devemos julgar ninguém baseado em fatores como sexo, cor, opção sexual, corte de cabelo, tamanho do nariz, pois somos todos uma complicada programação inimaginavelmente avançada embutida em nosso cérebro, que formam a complexidade que é o ser humano. Um dia, quem sabe, conseguiremos programar a nossa geladeira para sentir. Sentir medo, orgulho, nojo, gratidão e até fé. Talvez um dia a gente descubra como o truque é feito. E eu acho que esse é um dos receios primários de inúmeras pessoas com relação ao progresso do pensamento científico, impelindo-as a se apegar a noções sobrenaturais do universo. Afinal, descobrir como o truque é feito faz a mágica perder a graça. Pior ainda, faz você pensar que talvez nunca tenha existido uma mágica em primeiro lugar.

Bom, eu acho que somos nós, nesse espaço, nesse tempo, desse jeito.

E eu acho que isso já é um tremendo privilégio.

EvolutionCylon

*Decidi discutir um pouco sobre esse tema após escutar pela 2a vez o episódio “Blame” do podcast americano, Radiolab. É fascinante! Recomendo para quem quiser se aprofundar mais nas complexidades do assunto.

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