É manhã e uma senhora de uns 75 anos olha para Julio e Giulia. Os olhos da senhora estão arregalados, absolutamente incrédula com tamanha falta de etiqueta que presencia bem no meio do Starbucks!
Giulia está montada em Julio, ambos em cima do sofá. A moça segura uma xícara de café expresso e força-a na boca de Julio para que ele beba, no entanto o rapaz resiste corajosamente.
JULIO (afastando Giulia de si): Eu bebi café a minha vida inteira!
GIULIA (forçando a xícara em direção a boca de Julio): Eu sei.
JULIO (afastando Giulia de si): Um dia sem beber não faz diferença!
GIULIA (forçando a xícara em direção a boca de Julio): Da última vez que você não tomou, você dormiu no volante, Julio!
JULIO: Que dia é hoje?
GIULIA: O que isso tem a ver?
JULIO: Que dia é hoje?!
GIULIA: Você tem celular, Julio!
JULIO: Eu não consigo pegar o meu celular, com você em cima de mim!
Giulia desiste. Ela sai de cima de Julio e senta-se ao lado dele, sentindo-se impotente.
Julio não parece irritado, apenas abana a cabeça negativamente de forma contínua. Ele suspira, pega o celular do bolso e, quase que instantaneamente, seu rosto se contorce em desespero.
GIULIA: Eu não tô pensando em você, Julio, tô pensando em mim que não dirige e vai tá no passageiro.
JULIO (sem desgrudar os olhos da tela do celular): O tempo tá passando rápido demais.
GIULIA: O quê?
Julio volta o olhar angustiado para Giulia.
JULIO: Você não sente que o tempo tá passando rápido demais?
GIULIA: O que tem a ver com você não tomar café?
JULIO: Você não sente?
GIULIA: Com relação a quê?
JULIO: O quê?
GIULIA: Tá passando rápido demais com relação a quê?
JULIO: Com relação a sempre!
GIULIA: O que é “sempre”?
JULIO: Com relação ao passado.
GIULIA: O seu passado?
JULIO: O passado de quem mais?
GIULIA: De todas as outras pessoas que existiram.
JULIO: Claro que com relação ao meu passado.
GIULIA: O que isso tem a ver com você não tomar café?
JULIO: Com relação a minha infância.
GIULIA: Você tomava café na infância. E muito.
JULIO: Café me deixa acelerado.
GIULIA: Você acha que o café tá fazendo o tempo passar rápido demais?
JULIO: Rápido demais pra mim.
GIULIA: Café não faz o tempo passar rápido demais.
JULIO: Você não sente que o tempo tá passando rápido demais?
GIULIA: Pensar logaritmicamente faz.
JULIO: Lá vai.
GIULIA: Lá vai?
JULIO: Eu não tenho tempo pra ouvir o que você aprendeu vendo vídeos arrogantes e toscos no YouTube.
GIULIA: Pelo menos eu tenho um mínimo de embasamento, não supus que é o café que tá fazendo o tempo passar rápido demais.
JULIO: Então você sente que o tempo tá passando rápido demais.
GIULIA: Eu nunca disse que não sentia.
JULIO: Claro que disse.
GIULIA: Não disse.
JULIO: Eu ouvi você dizer.
GIULIA: Tanto faz, Julio.
JULIO: O que tem a ver “pensar logaritmicamente”?
GIULIA: Os vídeos são toscos.
JULIO: São pessoas que não são especialistas falando pra um monte de gente suscetível a acreditar em qualquer coisa.
GIULIA: Ok.
JULIO: Mas eu quero ouvir.
GIULIA: Vai te fazer perder tempo. E ele já passa rápido demais.
JULIO: Eu não tomei café.
GIULIA: Quê?
JULIO: É o que faz ele passar rápido demais. Então eu tenho tempo.
Giulia suspira, levemente irritada.
GIULIA: Tá. Sabe como a gente conta tipo 1,2,3,4,5,6?
Silêncio.
JULIO: Você tá me perguntando?
GIULIA: Tô.
JULIO: Achei que fosse retórica.
GIULIA: O nosso cérebro, na verdade, não funciona assim. A gente pensa e sente em sequências como 1,3,9,27. Ou seja, nós percebemos o mundo em uma escala logarítmica, e não aditiva. A gente sente dessa forma: Se você tem um alto falante e coloca dois, o som não duplica. Você precisa de 10 pra ele duplicar, e 100 pra triplicar. Ou seja, proporções de 10. E a gente pensa dessa forma, como medida de sobrevivência inclusive: “tem um leão prestes a me atacar ou dois?” é uma pergunta com um significado totalmente diferente de “tem 58 leões prestes a me atacar ou 59?”. Você percebe que na primeira, você tá dobrando o valor, dobrando a ameaça, enquanto na segunda, tanto faz se é 58 ou 59, mas nas duas você tá adicionando a mesma quantidade de leões. E a mesma coisa é com o tempo. A sua impressão de tempo é logarítmica como as suas outras percepções. Quando você faz 2 anos, você viveu o dobro de quando você tinha 1. Mas quando você viveu 90 anos e faz 91, 1 ano é só 1/91 do que você viveu. Por isso, sua infância parece que demorou muito tempo, e à medida que o tempo passa o “um ano a mais” perde o valor. Isso sem contar que o nosso cérebro registra experiências novas com muito mais-
Giulia se interrompe ao ver Julio dormindo de boca aberta, roncando alto.
Ela pega sua xícara de café expresso, que ainda tem metade do conteúdo, e se aproxima sorrateiramente dele.
Um fio de café começa a ser derramado goela abaixo de Julio. Quando o conteúdo inteiro da xícara adentra sua garganta, ele acorda em um pulo.
GIULIA: Eu sei que você tomou café a vida inteira, mas nem sempre pensar logaritmicamente garante a sobrevivência.
Naquele dia, nenhum acidente de carro aconteceu e a senhora de 75 anos retornou para casa com uma estória para contar a seus netinhos. Afinal, logo eles crescerão, e cada momento com eles é precioso.
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*para se aprofundar um pouco a respeito da percepção humana do tempo, recomendo os dois vídeos do canal de YouTube, Vsauce, que extraí as informações sobre o tema: